sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Poesias que não são alegres nem tristes mas curam - I


Rios sem discurso


João Cabral de Mello Neto
Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.
O curso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloqüência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase e frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.

Ciranda

Doente, fui procurar curas. Encontrei palavras de ordem exaltadas.
O primeiro nomeou: subjetividade lixo. O segundo diagnosticou: bonequice.
O terceiro foi aquele que calculou: 40 graus de febre, 500 mg de antibiótico.
Desobediente, esperei o quarto no quarto.
A febre touxe o sonho, no sonho veio a ciranda, na ciranda vieram as mãos.
Da laranja quero gomos; do limão,  pedaços; das meninas e meninos, abraços.
Dos curas, quis ajudas.