O amor eterno e o O retrato do rei

O amor eterno e o romance O retrato do rei
Marta Rezende

Um caso amoroso, um romance, é um espelho que carregamos ao longo de um caminho. Projetamos no ser amado as nossas faltas, os nossos desejos, e compartilhando aquele amor, sentimos alcançar a completude. No entanto, quando concluído o caminho, superada uma etapa da vida, é costumeiro que o espelho se parta e, assim, aquele amor, que pensávamos ser para o resto da vida, acaba indo para o beleléu. Temos de convir, no entanto, que há amores que duram mais que um caminho, percorrendo novos caminhos, sendo que alguns, raros, acabam se sustentando pelo resto da vida, mantendo-se os dois unidos e amantes até mesmo pelos mais tortuosos caminhos. Todas os amores, dos fugazes aos eternos, são ótimos na minha opinião, aliás, modesta opinião, pois só conheço, de experiência vivida, os amores do “caminho do meio”, nem fugazes, nem eternos. Mas, sendo a esperança a última que morre, continuo tendo a esperança que o meu amor atual vai se eternizar. Fundamental, porém, não ter muita ilusão. O apego é a causa de todo o sofrimento, dizem os zen-budistas, e eles têm razão.

Procuro praticar o não apego, ao menos o apego exagerado, por qualquer coisa, material e até mesmo espiritual. Com os livros, essa prática para mim é uma constante. Acabo de ler um livro e já presenteio algum amigo ou amiga, principalmente quando gostei da leitura. Quando não gosto coloco o livro no lixo, vai que alguém o encontra e gosta. O problema desse meu desapego exagerado com os livros é que custa um pouco mais ao meu bolso, pois não é incomum que eu queira reler um livro que muito gostei. Assim tenho que comprar o livro que já comprei. E compro. E releio. E re-re-compro. E re-re-leio. São os meus amores eternos pra valer. Umas tantas vezes comprei o romance O retrato do rei, de autoria da Ana Miranda. Lembro-me como se fosse hoje da primeira vez. Ia enfrentar uma fila, e como enfrento filas lendo, entrei antes numa livraria, bati o olho naquele e o levei. É como disse o Picasso “não procuro, acho”. Já comecei a ler ali mesmo, saindo da livraria e caminhando, trombando com gente, com poste, com lata de lixo, pela avenida Paulista. Fui me deliciando com a narrativa adorável, adorável inclusive porque conta uma história que tem a ver com Ouro Preto, onde morava o meu namorado à época, um amor que parecia eterno. O amor pelo namorado acabou. Mas, o amor pelo O retrato do rei continua firme.

Por que é que gosto tanto desse livro? Tantas são as razões. Uma delas é que se trata de uma história de amor, um amor que se desenrola no contexto de uma guerra, se não guerra ao menos um forte e longo conflito. Amor e conflito dão pano para manga num romance, deixando-o cheio de tramas que divertem muito o leitor que gosta de aventuras, como eu. A guerra dos emboabas é o contexto em que se desenrola a narrativa. Romance histórico, portanto. De verdades ou invenções tratam o romance histórico? Não sei, nem quero saber muito desse papo, pois não ando à cata de verdades. Em arte e literatura, aprecio mesmo as invenções verdadeiras. Então, gosto também desse romance porque através das suas invenções verdadeiras, aprendo um bocado de história. Não a História, os grandes e oficiais acontecimentos históricos, mas sim as histórias das entranhas da História. Fico sabendo nesse romance como se guerreava contra e a favor dos paulistas, originando ódios históricos.

Como sou uma mineira que adora Minas e que mora em São Paulo e adora São Paulo, para mim é fundamental entender as entranhas de como é que começou essa antipatia estranha, ainda resistente (cada vez menos, ainda bem) dos mineiros pelos paulistas, sendo todos farinha do mesmo saco. Sim, farinha de mandioca que índio ensinou fazer aos portugueses que viraram brasileiros que viraram bandeirantes, e que saíram de São Paulo e comeram farinha de mandioca por todo o caminho. Não fosse isso, não teriam tido forças para chegar ao Itacolomi e encontrar o tão desejado ouro e, sem querer, inventado Minas (que bela invenção!). Muito ouro e pouca carne nas Minas do início do século XVIII. A gente fica sabendo em O retrato do rei como os tubérculos eram importantes para matar a fome, como se trambicava com a carne e como se morria de fome e veneno na fria Vila Rica. Tão fria que tornava as mulheres tísicas. Como sofriam as mulheres! E como o médico que tratava as mulheres era suspeito. E fica sabendo como se amava em Minas, mulheres e homens. Inclusive, amor entre senhor e escrava que de tão amada se tornava espécie de rainha pelo poder do seduzido homem. E fica se sabendo também como se odiavam os homens das irmandades concorrentes e tantos outros ódios de homens. Tudo pelo poder do ouro. Talvez um poder cuja finalidade maior seja conquistar o amor eterno, a carne e o espírito, de uma bela e doce mulher. A gente não sabe, talvez nunca vá saber, se é essa mesma a razão da ambição. O fato é que para se ter o ouro de Vila Rica e região, percorria-se longos caminhos. É assim que começa o romance, percorrendo um longo caminho, a Estrada Real, em que um homem leva o retrato do poder e uma mulher leva o espelho.

Ouro Preto, outubro de 2009

Marta Rezende


Entrevista de Ana Miranda a Marta Rezende

M - O retrato do rei logo fará 20 anos. Você publicou muito depois disso. Como vê hoje esse romance no seu processo de criação literária, ou seja, o que ele representa para você agora?

A - Sim, Marta, escrevi muitos livros desde então, e me sinto, esteticamente falando, literariamente falando, distante desse momento registrado pelo O retrato do rei. É um livro bastante respeitoso quanto às regras de construção de um romance clássico, com os diálogos, as descrições... Hoje escrevo de forma muito mais livre e pessoal. No entanto, creio que o meu amor pelo livro, pelos personagens, cresceu, e sou capaz de compreendê-lo de forma mais ampla. Ele tem qualidades maravilhosas, decorrentes do próprio tema, da época, dos lugares onde se passa. Ouro, uma guerra nativista... Tem um frescor, uma juventude... E, além disso, é o livro predileto de meu filho.

M- Em conversas sobre a guerra do emboabas, sempre indico O retrato do rei como referência importante. Não raro escuto a pergunta de historiadores: é ficção ou história? Remeto sempre à bibliografia que apresenta no final do livro, mesmo assim fica essa dúvida. Exemplo disso: as condições de saúde e alimentação à época da guerra que o livro relata de modo muito interessante e também a história do retrato do Dom João V com suposto poder de colocar fim ao conflito. Enfim, o que é ficção e o que é história nesse romance?

A - Durante muitos anos foi um dilema para mim essa questão dos limites entre história e ficção, muitas questões irrespondíveis me deixavam sem sono. Até que um dia percebi que a resposta é simples: num romance, tudo é ficção. O romance é um gênero realista, que tem compromisso com a verossimilhança, mas pode trabalhar com fontes as mais diversas, por exemplo, com as memórias pessoais, ou as memórias familiares de um autor. Da mesma forma, pode trabalhar com a memória literária, ou a memória histórica de um país. Mas, sempre, haverá uma presença da experiência pessoal do autor, sejam quais forem os elementos por ele escolhidos. Aliás, a escolha dos elementos, do tema, já é um subjetiva. Sempre o romance será ficção. De toda forma, gosto de deixar claro que, embora ciente de que estou escrevendo ficção, trabalho com elementos anotados de realidades, e respeito ao máximo as informações que encontro.

M - Você realizou trabalho de campo quando fazia a pesquisa, ou seja, visitou lugares que foram palco do conflito? Se sim, conte um pouco desse processo e o que isso ajudou na criação da sua história.

A - Conheço muito bem Minas Gerais. Desde adolescente eu ia a Ouro Preto, na década de 1960, subia e descia ladeiras, dormia em casa de moradores, entrava em repúblicas, fazia pequenas esculturas de pedra-sabão, conversava com gente das ruas... Conheço Mariana, Sabará, Tiradentes, São João d'El Rei... Fazendas, sítios... Caminhos... Isso, claro, ajudou-me a sentir alguns aspectos para enriquecer o livro, porque muito se pode encontrar nos livros e documentos, e pode ser arriscado olhar o presente em busca do passado, pois as cidades mudam, muito, até a natureza muda. Mas é maravilhoso saber, por exemplo, a sensação de estar cercado de montanhas.... ou a luminosidade, as cerrações, o modo do crepúsculo... A entonação das pessoas, o cheiro da comida... Isso é perceptível, quando visitamos o lugar. Mas, sempre pode haver um texto de algum autor, com esses registros sensoriais. Ou seja, a ida ao local não é imprescindível. Imprescindível é a capacidade de imaginação, de transporte pessoal, a percepção, e até algumas percepções extra-sensoriais, ou seja, além dos cinco sentidos... Muita coisa precisa ser adivinhada.

M - O retrato do rei trata da violência na corrida ao ouro em Minas Gerais no início do século XVIII e também do amor da sofrida personagem Mariana. Fale para nós um pouquinho sobre o que anda refletindo atualmente sobre violência e amor.

A - São aspectos das vidas, todas as vidas, em todas as épocas. O amor é um sentimento, e a violência, uma qualidade, a qualidade do violento. São antagônicos, o amor é carregado da ideia de paz, talvez pelos ensinamentos do Cristianismo, Paz & Amor é até um lugar-comum. Mesmo não sendo puramente assim, sabemos como as relações de amor contém momentos de agressividade, violência. E a violência, o contrangimento físico ou moral, a coação, é um elemento da guerra, da inquietação, da revolta, do desentendimento, da intolerância.... Filosoficamente, são antagônicos, em seus sentidos. Mas, como todos os opostos, acabam se unindo em algum ponto, quando às vezes a violência é cometida por amor, ou quando a violência acaba gerando um estado de paz..... ou, pelo outro lado, quando o amor pode gerar situações de violência. Quando a violência aproxima... Nada se disassocia, neste campo. Sei que, quanto mais sofremos violências, mais almejamos o amor.. E sei, também, que precisamos de amor, não de violência, para sermos melhores do que somos. A violência´nos é inerente, infelizmente, pois somos animais, ainda, em nossas partes mais profundas. Ainda matamos animais para comermos. Ainda matamos. Ainda maltratamos... A violência é carnal. O amor seria o espírito. Quanto mais amamos, mais temos capacidade de amar, mais somos desenvolvidos. A violência é primitiva. O amor é elevado. Infelizmente, nós, seres humanos, temos os dois elementos. A mensagem do Cristianismo, e de outras religiões, crenças, filosofias, é o amor, é o crescimento espiritual. Devemos amar.

M - Há uns anos atrás, fizemos um evento em Ouro Preto em comemoração aos 10 anos de O retrato do rei, nos dando o prazer da sua companhia. Você foi então presenteada com uma pintura do Afonso Penna com o seu retrato. Fico curiosa sobre isso porque à época essa pintura me pareceu interessante, mas hoje tenho dúvidas até mesmo se ela de fato existiu. Ela existe?

A - Sim, essa pintura existe, é linda, está comigo, há anos. Está afetada pela maresia, pois, quando me mudei para cá [Fortaleza] , meus pertences ficaram ancaixotados por alguns meses, enquanto eu terminava a reforma da casa, e a umidade, a maresia, estragaram muitas coisas preciosas para mim, cheguei a perder uma quantidade imensa de livros, alguns quadros, desenhos meus... Um acidente, acontecem... Mas,mesmo se não existisse essa pintura, fosse apenas um sonho, sempre eu iria me recordar de você, do pintor, o Afonso Penna, da homenagem, daquela contadora de histórias [Angela Xavier] , extraordinária, que girava o xale... e sabia o livro de cor...

M - É isso Ana, se quiser, escreva sobre outras coisas também.

A - Estou feliz de voltar a Ouro Preto. Espero encontrar a cidade ainda mais bonita.

Ana Miranda vai participar do Fórum das Letras 2009, no debate Ficção, lugar e história: (des) encontros entre literatura e vida, quinta-feira, 29 de outubro, às 16:30 h, no Cine Vila Rica, entrada gratuita.

Além de O retrato do rei, Ana Miranda é autora de Boca do Inferno, Desmundo, Amrik, Clarice, Dias e Dias, Yuxin, entre outros.