sábado, 16 de outubro de 2010

Figuraça esse Gaiarsa que desobstruiu tantos caminhos e explodiu um bocado de preconceitos

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Adeus Gaiarsa. Você foi grande, inclusive para mim. Não só lí seus livros com gosto. Recebi também as graças do seu poder de curar: curar cabeças, colar cabeças no corpo, extrair medos, apagar rostos, curar respiração e angústias, soltar o tesão. E mais: comemos juntos chocolates.  Você adorava chocolates. E os comeu sem culpa. 90 anos de vida contra a culpa, a favor do prazer e da vida desembaraçada e livre.

"Estou muito em busca disso, das coisas que não aparecem e que estão mudando o mundo e que o nosso pensamento antigo não se dá conta".
 
"Quer prova mais absurda de que nós somos nós, e não eu? Imagine-me, coitado de mim, no meio da floresta amazônica, pelado. Não duro três dias. "

" Durante muitos anos, morria de inveja dos machões. Era difícil chegar perto das moças pra conversar, o que eles faziam bem. Isso foi até eu saber que eles não faziam nada. Os homens são extremamente monótonos na cama."

" A sexualidade não é muito diferente de antes. A mãe continua não tendo xoxota e as crianças não podem ter xoxota nem pinto. A sexualidade natural de bicho saudável é castrada."

 
"Ah, eu quero um trabalho". Oito horas por dia de escravidão para ganhar, com sorte, 600 ou 700 reais por mês. E você tem dois filhos e aluguel. Essa é a situação de quatro quintos da população."
 
Leia outras educativas, fortes, engraçadas, inteligentes e irreverentes opiniões do Gaiarsa aqui. Há também o site  Doutor Gaiarsa. Os livros dele são ótimos, alguns fundamentais. Gosto muito do Tratado Geral da Fofoca e também Amores Perfeitos. Ele foi extremamente estudioso e grande escritor, nos proporcionando uma obra mutísssimo relevante. Obra que deixou disponível na internet e você pode abaixar de graça. Isso sim é generosidade. Ao invés do direito autoral, Gaiarça acreditou no direito ao conhecimento livre.

Les voiles

J'aime les voiles. Je suis une femme soumisse? Je perturbe l´ordre sociale?

Femme orientale
Jean François Portaels

CUIDADO


Um querido escreveu sobre esse blog. Obrigada. Muito bonitas as suas palavras. Fiquei pensando numa palavra que está ali: CUIDADO. Esse blog inspira cuidados...! Fui no dicionário saber o que é cuidado. Não me identifiquei com nenhum verbete. Mas me lembrei do Deleuze falando sobre a elegia no seu Abcedário.  Aí sim, reconheci. Esse blog é uma elegia cheia de ais. A vida é grande demais para mim. Dói aqui , dói ali. A elegia é um  cuidado.

Elegia
Gilles Deleuze

" Sim, eu sempre gostei da elegia. Ela é uma das duas fontes da poesia, uma das principais fontes da poesia. É o grande lamento. Há uma grande história a ser feita sobre a elegia. Não sei se já foi feita, mas é muito interessante. Há o lamento do profeta. O profetismo é inseparável do lamento. O profeta é aquele que se lamenta e diz: “Mas por que fui escolhido por Deus? O que eu fiz para ser escolhido por Deus?” Neste sentido, ele é o contrário do padre. Ele se queixa do que acontece com ele. O que significa: “É grande demais para mim”. Eis o que é a queixa: “O que está acontecendo comigo é grande demais para mim”. Aceitando, pois, o lamento, o que nem sempre se vê, pois não é só “Ai, ai, que dor!”, mas também pode ser. Aquele que se queixa nem sempre sabe o que está querendo dizer. A velha senhora que se queixa de seu reumatismo está, na verdade, querendo dizer: “Que potência está se apoderando da minha perna e que é grande demais para que eu a suporte?” Se formos procurar na História, é muito interessante, pois a elegia é, antes de tudo, a fonte da poesia. É a única poesia latina. Na época, eu lia muito os grandes poetas latinos Catulo, Tibúrcio e outros. São poetas prodigiosos. O que é a elegia? Acho que é a expressão daquele que não tem mais um estatuto social, temporariamente ou não. É por isso que é interessante. Um pobre velho se queixa. Um homem nas galés se queixa. Não tem nada a ver com tristeza, é a reivindicação. Há uma coisa na queixa que é impressionante. Existe uma adoração na queixa, é como uma oração. Os queixumes populares, tudo... A queixa do profeta, a de um tema que você conhece bem, que é a queixa do hipocondríaco. O hipocondríaco é alguém que se lamenta. E as queixas do hipocondríaco são bonitas: “Por que tenho um fígado? Por que tenho um baço?” Não é o Ai, como dói!”, e sim “Por que tenho órgãos?” Por que isso, por que aquilo... O lamento é sublime! O queixume popular, o lamento do assassino, que é cantado pelo povo... São os excluídos sociais que estão em situação de lamento. Há um especialista húngaro chamado Tökel, que fez um estudo sobre a elegia chinesa no qual mostra que a elegia chinesa é, acima de tudo, animada por aquele que não tem mais estatuto social, um escravo livre. Um escravo ainda tem um estatuto, por mais desgraçado que seja. Pode ser infeliz e espancado, mas tem um estatuto social. Mas há períodos em que o escravo livre não tem estatuto social, ele está fora de tudo. Deve ter sido assim para a geração dos negros na América com a abolição da escravidão. Quando houve a abolição ou então na Rússia, não tinham previsto um estatuto social para eles e foram excluídos. Interpretam erroneamente como se eles quisessem voltar a ser escravos! Eles não tinham estatuto. É neste momento que nasce o grande lamento. Mas não é pela dor, é uma espécie de canto e é por isso que é uma fonte poética. Se eu não fosse filósofo e fosse mulher, eu gostaria de ter sido uma carpideira. A ideira é uma maravilha porque o lamento cresce. É toda uma arte! Além do mais, tem um lado pérfido: não se queixe por mim, não me toque. É um pouco como as pessoas demasiadamente polidas. Pessoas querendo ser cada vez mais polidas. Não me toque! Há uma espécie de... A queixa é a mesma coisa: “não tenha pena de mim, disso cuido eu”. Mas ao cuidar disso, a queixa se transforma. E voltamos à questão de algo ser grande demais para mim. A queixa é isto. Eu bem que gostaria de todas as manhãs sentir que o que vivo é grande demais para mim porque seria a alegria em seu estado mais puro. Mas deve-se ter a prudência de não exibi-la, pois há quem não goste de ver pessoas alegres. Deve-se escondê-la em um tipo de lamento. Mas este lamento não é só a alegria, também é uma inquietude louca. Efetuar uma potência, sim, mas a que preço? Será que posso morrer? Assim que se efetua uma potência, coisas simples como um pintor que aborda uma cor, surge esse temor. Ao pé da letra, afinal, acho que não estou fazendo Literatura quando digo que a forma como Van Gogh entrou na cor está mais ligada à sua loucura do que fazem supor as interpretações psicanalíticas, e que são as relações com a cor que também interferem. Alguma coisa pode se perder, é grande demais. Aí está o lamento: é grande demais para mim. Na felicidade ou na desgraça... Em geral, na desgraça. Mas isso é detalhe."