quarta-feira, 19 de maio de 2010

Rock e filosofia

Rock e Filosofia
Daniel Lins

Por que um filósofo se interessa pelo rock?

A música é uma questão filosófica, de pleno direito. Platão, na República, pontifica: “Cabe aos responsáveis evitar que nada de novo, no que diz respeito à ginástica e à música, se introduza contra as regras estabelecidas. Quais são as harmonias efeminadas usadas nos banquetes? A jônica e a lídia. Não se pode mudar os modos da música sem golpear as mais importantes leis da Cidade”. (1)

Por que Bob Dylan? A fascinação de alguns roqueiros por Deleuze, sua participação em gravações de bandas de rock, o uso que faz de algumas letras de Dylan para pensar sua filosofia, há no rock algo que constitui um elemento de autocriação.

Deleuze diz: “As aulas foram uma parte da minha vida, eu as dei com paixão. É como um laboratório de pesquisas: dá-se um curso sobre aquilo que se busca e não sobre o que se sabe. É preciso muito tempo de preparação para obter alguns minutos de inspiração. Nada se opõe, em princípio, a que um curso seja um pouco até como um concerto de rock.". (2)

Como Bob, ele faz o elogio do bando: “Os bandos vivem os piores perigos, reformar os juízes, tribunais, escolas, famílias e conjugalidades.” (3)

Filosofia no rock brasileiro: Legião Urbana “Teatro dos Vampiros”, Engenheiros do Hawaii “Muros e Grades”, “O Anarquismo.” “Toda forma de poder é uma forma de morrer por nada.” Titãs: “Televisão.”. Engenheiros do Hawaii denuncia o despotismo esclarecido e sugere um individualismo radical como alternativa de “sobrevivência” à industrial libidinal. Renato Russo, em “A fonte”, propõe uma leitura da Alegoria da Caverna.

Sair dos hábitos duradores, matadores de desejos e vontade de vida, eis a força do sentido que se recusa a estacionar, a torna-se uma representação.

O rock parece insensato, tanto do ponto de vista do sentido inteligível, como insuportável do ponto de vista da sensibilidade, mas é assim que ele faz sozinho um mundo à parte. Um mundo é uma circulação interna de sentidos permitindo enviar signos uns aos outros, e no qual Bob ocupa um imenso lugar, o que leva Deleuze, Foucault, J-L Nancy e Derrida a admirá-lo.

Há mais de 50 anos o rock age como o mundo, como o cosmos: rock se experimentando como um mundo privado do mundo: o rock e o roqueiro como diferenças intratáveis – satanização e repressão pela Igreja, comunismo de leste e puritanismo americano. Dylan foi proibido de cantar na China. O trio: “Sexo-Droga-Rock.” não para de açoitar as boas almas, pois perdura como um estigma.

O rock, ligado à história de protestos políticos, sociais, deu origem ao movimento americano “Canção de Protesto.” Esse apelo é também um desejo de metamorfose, e no caso de Dylan, de combate heraclitiano, de transvalorização, ilustrado em seu poema-canção: “Os tempos mudam.” O que muda no tempo do rock é que a afirmação musical visa o agora, o imediato revisitado pela saudade do futuro!

O rock se constituiu como fenômeno mundial em todos os sentidos e teve um papel peculiar nas transformações do século XX. Sabemos o que representou a escuta do rock nos países de Leste, com a queda do muro de Berlim; antes, a maioria dos jovens escutava rock, sobretudo, em Berlim, onde era possível captar as rádios ocidentais.

Não há, de fato, outro fenômeno cultural que possa reivindicar semelhante força de propagação e contágio. O rock precedeu algo desse movimento geral de abertura, ou saída da clausura, que chamamos hoje globalização.

Pé na estrada, sucesso, críticas ferrenhas, mutismo, para Dylan, uma biografia não é uma literatura de arquivo, é uma literatura-rock, uma composição literária que deixa escutar uma outra música.

O garoto, com um boné de operário, que se torna um homem rico, é comparado a Rimbaud, tanto pelo conteúdo literário de seus textos como por uma carreira precoce, entrecortada por ausências prolongadas.

Ousar é preciso! A TV Cultura de São Paulo abre um módulo, no âmbito do programa “Café Filosófico” com o tema: “Filosofia e Rock – Gilles Deleuze e Bob Dylan.”. Por outro lado, a Universidade Federal do Pará acolhe em Belém o X Simpósio Internacional de Filosofia, Nietzsche/Deleuze, “Natureza/Cultura”, de 25 a 27 de maio, inaugurando a etapa cigana do projeto que teve sua fase áurea em Fortaleza, durante nove anos.

(1) Platão. A República, Livro III. Os pensadores. São Paulo: Ed. Abril, p. 92.
(2) Deleuze, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 173-174.
(3) Deleuze, Gilles;  Parnet, Claire. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998, p.17.
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Daniel Lins me autorizou a publicar esse artigo aqui.

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