Começou a mudança
Amir Khair[1]
O presidente Lula tem sido acusado de influir no processo de escolha das pessoas centrais que deverão compor a nova equipe de governo. É natural que ocorra sua influência, especialmente para o início de mandato, que se propõe a dar continuidade ao seu governo e no qual Dilma participou em função de destaque.
Uma dessas pessoas centrais da preferência de Lula, no entanto, foi recusada: Henrique de Campos Meirelles, o todo poderoso presidente do Banco Central (BC) durante os oito anos do governo Lula. A escolha de Guido Mantega e a recusa na continuidade de Meirelles parece ter sido o sinal dado para as novas mudanças a serem feitas na política econômica, especialmente na política monetária para a redução da Selic.
Dilma escolheu para o lugar de Meirelles, Alexandre Tombini, diretor de normas do BC, funcionário de carreira do governo, e não proveniente do mercado financeiro. A não vinculação com o mercado financeiro poderá contribuir para uma nova visão de política monetária, mais autônoma e que não aposte todas as suas fichas na inadequada Selic como instrumento de controle da demanda, como afirma o mercado financeiro.
Foi dada a Tombini pela futura presidente a garantia de autonomia do BC, mas as recentes decisões de restrições ao crédito para controlar a demanda foram tomadas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), que é presidido pelo Ministro da Fazenda e composto pelo Ministro do Planejamento e o Presidente do BC. A operacionalização dessas decisões compete ao BC, mas a decisão foi do CMN.
Parece que a nova forma de fazer política monetária caminha para o modelo chinês, que prioriza o controle da liquidez ao invés da taxa básica de juros para obter resultado no controle inflacionário. Vamos aguardar.
Fato é que o mercado financeiro foi pego de surpresa. Estava pressionando novo aumento para a Selic, aproveitando a elevação da inflação devido à subida circunstancial do preço dos alimentos, combustíveis e commodities, o que contraria a política do governo de redução da Selic para cumprir três objetivos: a) reduzir as despesas com juros da dívida interna; b) reduzir o custo de carregamento das reservas internacionais e; c) contribuir para não agravar ainda mais a apreciação do real, especialmente agora que os Estados Unidos começarão a despejar US$ 600 bilhões no mercado e o Banco Central Europeu (BCE) irá emitir euros para reforçar a ajuda aos países da zona do euro em sérias dificuldades.
Além da Grécia e Irlanda, já socorridas, Portugal, Espanha e Itália estão na fila de espera. O BCE prometeu realizar compras massivas dos títulos soberanos. Algumas análises, segundo o jornal Valor Econômico do dia 2, imaginam que vem aí a política de afrouxamento monetário europeia, com o BCE sendo capaz de colocar à disposição do fundo de estabilização financeira até US$ 2,6 trilhões!
Apesar da inundação de liquidez internacional e os danos que causa ao Brasil, a maioria do mercado financeiro – Bradesco é exceção - ainda insiste na elevação da Selic na reunião do Copom em janeiro e que termine 2011 em 12,25%. Esse risco para janeiro existe, caso o IPCA continue em nível elevado devido a fatores temporários ou casuais e o BC ceda à pressão do mercado financeiro, abdicando de sua autonomia. Assim, parece de bom senso que o controle da inflação ou as decisões do Copom sejam tomadas desconsiderando as variações de preços sazonais e circunstanciais. É o que fazem boa parte dos bancos centrais. Caso necessário, o CMN, que define as metas de inflação, tem poder de alterar o indexador inflacionário para que não fique sujeito a bruscas oscilações como as que ocorreram e estão ocorrendo este ano.
A precipitação do mercado financeiro para elevar a Selic está baseada na subida de preços dos alimentos, commodities e combustíveis e no interesse de elevar seus lucros na compra de títulos do governo federal engordados pela maior Selic. A ameaça da inflação é o pretexto sempre usado para elevar a Selic. A resolução do CMN que passou a vigorar a partir do dia 6 e outras que poderão ocorrer vão contra a estratégia do mercado financeiro de pressionar o BC e parecem seguir a determinação da presidente de baixar a Selic.
Até esta decisão do CMN, o BC afirmava junto com o mercado financeiro, que a forma de reduzir o ímpeto da demanda é elevar a Selic. Essa política atravessou os mandados de FHC e Lula, foi a responsável pelo déficit fiscal e a valorização excessiva do real com desdobramentos sérios sobre a indústria na competição interna e externa com empresas do exterior. As empresas sediadas no País têm a desvantagem de sofrer o chamado custo Brasil, formado pelos gargalos e custos elevados de infraestrutura e logística, carga tributária e juros altos, além um sistema burocrático pesado.
Segundo estudos da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), o processo de desindustrialização está em curso. O coeficiente de importação da indústria brasileira subiu de 16,9% no 2.º trimestre de 2009 para 22,7% no 3.º trimestre de 2010 e poderá ao final deste ano ficar próximo de 25%. Além disso, a indústria de transformação para sobreviver está substituindo matérias-primas e máquinas locais por importadas.
Esse quadro deve servir de alerta para não agravar ainda mais o problema com a elevação da Selic e para isso vale recordar que ela não cumpre mais a função de restringir a demanda, mesmo sendo a mais alta taxa de juros real do planeta. Exemplo disso ocorreu a partir de maio quando a Selic subiu 2,0 pontos percentuais (pp) de 8,75% para 10,75% e os juros ao consumidor, que pode reprimir a demanda, caiu 1,7 pp. Mas o que mais chama a atenção é a afirmativa do BC e do mercado financeiro que uma alteração na Selic leva nove (!) meses para fazer efeito sobre a inflação. Num mundo dinâmico, globalizado, com tantos fatores influindo sobre a inflação a cada dia, tomar uma decisão cujo efeito leva tanto tempo evidencia a inadequação deste desgastado instrumento para controlar a demanda.
Mas já ficou claro para algumas análises, que desde o Plano Real a política do BC para o controle inflacionário foi a de manter a Selic elevada para atrair dólares e com isso apreciar o real. Assim, barateia as importações e as amplia para atender a demanda. A mola mestra do controle inflacionário foi até agora a âncora cambial.
O real foi a moeda que mais se apreciou perante o dólar levando a conta externa passar de superavitária a deficitária. As críticas se avolumaram e começaram a surgir dúvidas quanto à exposição das contas externas do País, dependente cada vez mais de produtos primários. Com a queda contínua do dólar perante o real, o Ministério da Fazenda se viu obrigado a elevar sucessivamente o IOF sobre as aplicações de estrangeiros em títulos do governo. O objetivo foi anular a estratégia do BC de manter a Selic elevada para atrair o capital estrangeiro em títulos do governo e assim formar a âncora cambial.
Com a injeção de US$ 600 bilhões a ser feita pelo Banco Central americano perde o sentido manter a Selic elevada, o que aceleraria o processo de desindustrialização. Essa é a questão principal a ser enfrentada nos próximos anos. Assim, espero que a Selic inicie a partir de janeiro seu processo de queda e venham novas restrições para a entrada de dólares com maiores tributações e restrições no campo da regulação.
As decisões do CMN mostraram nova postura do governo para tentar controlar a demanda de forma imediata ao encarecer o crédito. Resta, no entanto, acompanhar com atenção se essas medidas irão atingir as causas principais da evolução recente da inflação puxada pelos alimentos, commodities, combustíveis e serviços. Tenho dúvidas, pois a retomada da inflação tem mais a ver com um choque de oferta de alimentos a nível mundial e elevação do preço das commodities devido à desvalorização internacional do dólar, do que pressão de demanda, que atua mais sobre os serviços. É importante, no entanto, verificar como o encarecimento do crédito atinge os preços dos serviços.
Caso na nova política econômica as decisões sobre o controle inflacionário forem tomadas de forma mais integrada e com vários instrumentos de controle, como fez agora o CMN, as chances de sucesso serão maiores. Ao que parece a nova política econômica com o fortalecimento do Ministro da Fazenda, a troca de comando BC e possivelmente de alguns membros no Copom, finalmente estarão dando o sinal de que começou a mudança na condução de uma economia mais sólida, eficaz no controle da inflação e atenta à evolução cambial decorrente da liquidez internacional em franca expansão.
[1] Mestre em Finanças Públicas pela FGV e consultor. Esse artigo foi publicado no Estadão, Caderno de Economia, hoje.
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